No dia 1º de julho de 2022, uma sexta-feira, fui recebido pela Família Relíquias em uma casa de madeira localizada na Rua Eunice, Vila Portuguesa, mesmo endereço onde reside a senhora Ângela Maria desde 1977.
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Durante duas horas de prosa ouvi belos relatos sobre a história de vida do senhor José Relíquias Santos, mineiro de nascimento e tangaraense de coração. Do bate-papo participaram além da matriarca da família, Ângela Maria, hoje com 92 anos, as filhas Maria Eunice e Maria das Graças e o filho Arildo.
Um cafezinho sobre a mesa, vários álbuns de fotografias antigas, registros pessoais, relatos surpreendentes, sorrisos e lágrimas de emoção, amor e orgulho. A prosa resultou na narrativa que faço a seguir.
Era 24 de março de 1971 quando desembarcou em Tangará da Serra, vindo do interior do Paraná, o senhor José Relíquias Santos, acompanhado da esposa, Ângela Maria, e dos oito primeiros filhos. Na época, a cidade se resumia a uma pequena vila cheia de romantismo e gente trabalhadora, composta por ruas de chão, não muitas casas, algumas vendas e habitantes sonhadores e determinados, mas assustados com uma onda de ‘febre’ que já havia matado dezenas de pessoas.
Mineiro da cidade de Rubim, onde nasceu em 20 de setembro de 1925, José Relíquias Santos, que mais tarde passaria a ser conhecido como Zequinha da Aroeira, veio para Tangará da Serra, de Assis Chateaubriand (PR), onde residiu por um tempo com a família, sempre em busca de realizar seus sonhos e conquistar melhores condições de vida. Ouvia falar muito bem de Tangará e decidiu enfrentar o desafio de percorrer mais de 1.500 quilômetros em um caminhão carreta acompanhado de outras três famílias.
Com ele vieram, além da esposa, a baiana Ângela Maria dos Santos, os oito filhos: Maria Eunice, Atilina, Elidernei, João, Maria Aparecida, Marli, Arildo e Maria das Graças. Mais tarde, já em Tangará da Serra, nasceu o filho caçula do casal: Wanderley. Em cima do caminhão trouxeram os poucos pertences da família e um monte de sonhos a serem realizados.
Os familiares contam que levou-se vários dias para virem do Paraná até Nova Olímpia, mas o desafio maior era subir a Serra Tapirapuã, pela precária MT-358, rodovia não-pavimentada e repleta de surpresas.
“Quando chegou ali em Nova Olímpia, era tempo de chuvarada e corria água da serra e o caminhão não conseguia subir, ficamos o dia inteiro ali, pra depois vir pra Tangará”,
conta Maria Eunice
O motorista da carreta que trouxe a família para Tangará ficou abismado com a viagem e mais ainda com a precariedade das estradas e da pequena cidade em construção, cheia de problemas e incertezas, além de acometida por uma doença distinguida pelos entrevistados como febre amarela ou simplesmente febre, responsável por inúmeras mortes na virada da década de 60 para a década de 70.
“Tangará era uma cidadinha pequenininha, as casinha tudo de madeira cobertas de taubinha, a igreja católica era no meio da rua, sabe? Tinha muitas casinhas fechadas porque tinha dado aquela doença que falavam que era febre amarela, tinha morrido muita gente, outros tinham ido embora e uma outra parte ainda continuava aqui”,
narra Maria Eunice.
O motorista ainda sugeriu que Zequinha pensasse melhor e voltasse para o Paraná.
“Ele disse pro meu pai: o senhor tem oito filhos, maioria criança, se o senhor quiser voltar pro Paraná de novo, eu levo o senhor de graça, não cobro nada. Eu tenho fé em Deus - ele tava com o boné na cabeça -, que aqui eu não volto mais nunca”,
conta Maria Eunice.
A viúva, Ângela Maria, relata que Zequinha estava determinado a ficar.
“Ele disse: ô rapaz, eu não vou voltar não, eu já vim pra ficar, seja o que Deus quiser, vou ficar aqui”,
conta Dona Ângela.
“Quem diria que Tangará ia virar essa cidade que é hoje”,
comenta dona Ângela.
Tempo da febre: Os primeiros passos na Tangará dos anos 70
Quando Zequinha e família chegaram a Tangará da Serra, a cidade vivia momento de incerteza, abalada por uma doença apontada pelos entrevistados como febre amarela.
“Minha mãe e o meu irmão mais velho pegaram a doença, meu irmão tinha tomado água ali do [Rio] Ararão e pegou a doença, mas graças a Deus naquela semana veio um médico lá de Umuarama (PR) e tratou deles”,
conta Maria Eunice.
Mas isso não abalou a família. Zequinha assumiu o compromisso de abrir a terra onde hoje está localizada a Vila Londrina.
“Era tudo mato, ele pegou pra abrir uma roça ali e plantar a meia [dividir a produção com o dono da terra], ele roçou e derrubou o mato, não tinha motosserra, tudo no braço, no machado. Ele derrubou e plantou de tudo, e foi uma fartura, graças a Deus. Hoje é a Vila Londrina, virou cidade”,
relata Maria Eunice.
Ao longo dos anos seguintes, já distantes do momento de incertezas da febre, Zequinha e a família seguiram desbravando Tangará, abrindo novas terras, plantando o chão e criando os filhos.
“A gente não tinha dinheiro pra comprar terra, então meu pai abria e fazia roça a meia na terra dos outros”,
narra Maria Eunice.
O sonhado sítio e o despejo da Gleba Aurora
Em meados da década de 1970 surgiu a oportunidade da terra própria. Correu a informação de que haviam terras devolutas na região da Gleba Aurora e seu Zequinha não perdeu a oportunidade de ter um pedaço de chão para chamar de seu.
“Ele tirou um pedaço de terra, fizeram estrada tudo no braço e lá nós moramos por uns alguns anos, cada um tinha seu pedacinho de terra, tinha fartura, a gente plantava de tudo, criava porco, galinha, era muito bom”,
conta Maria Eunice.
Porém, a alegria durou pouco.
“Logo apareceu gente dizendo que era dono da terra, teve ordem de despejo e apareceram lá com os caminhões para tirar a gente de lá”. Houve reintegração de posse e as famílias que viviam no local foram todas retiradas e trazidas para a cidade. “Pegamos o que conseguimos, porco, galinha, mas ficou quase tudo lá na roça, no paiol, perdemos muita coisa, arroz e feijão, tudo”.
A família Relíquias se hospedou na casa de um padrinho e depois alugou uma casa nas proximidades. Zequinha sempre trabalhando nas roças das redondezas, seja com a abertura de novas áreas, seja com o plantio de cereais e criação de animais de pequeno porte, como porcos e galinhas.
Ficou conhecido como Zequinha da Aroeira
Um amigo de Zequinha chegou até ele e deu uma ideia que mudaria para sempre a sua vida e de sua família.
“Ele chegou e disse pro meu pai mexer com madeira, que dava dinheiro, que tinha bastante fazendeiro precisando de lasca, de palanque para fazer as cercas, naquele tempo não era proibido. Ele começou a comprar madeira das pessoas que tinham aroeira nos sítios, ele cortava lá no mato, fazia os palanques e as lascas e vendia pra fazer cerca e pra mangueira”,
relata Maria Eunice.
Em apenas três meses trabalhando com aroeira, Zequinha acumulou dinheiro suficiente para comprar um terreno na Vila Portuguesa, com uma pequena casa de madeira, coberta com tabuinhas, local onde a esposa reside até hoje.
“A gente mudou pra esse lote no dia 24 de dezembro de 77, era véspera de Natal, a gente não tinha fogão, minha mãe fez uma trempe no chão e fez o arroz, fritou a carne de porco, não tinha outra coisa, mas foi uma alegria tão grande. Esse foi nosso primeiro Natal aqui nessa casinha, há quase 45 anos”.
Neste período surgiu o apelido de Zequinha da Aroeira, em alusão ao trabalho desempenhado por ele na extração e comercialização de madeira, especialmente a aroeira. Os palanques de Zequinha resistem até hoje em sítios e fazendas de Tangará.
Os primeiros postes de energia da cidade
Os filhos relatam que os primeiros postes para implantação da rede de energia elétrica em Tangará da Serra foram extraídos por Zequinha.
“Os primeiros postes de aroeira foram tirados pelo meu pai, postes na avenida Brasil, tem fotos antigas desses postes, a gente não tem, naquela época era difícil tirar fotos, mas já vi fotos desses postes de aroeira da avenida Brasil, que foram tirados pelo meu pai”,
conta Maria das Graças, filha de Zequinha.
“Várias fazendas aqui de Tangará ainda é cercada com aroeira que o meu pai tirou”,
garante Maria das Graças.
O filho Arildo explica que o pai comprava as matas dos fazendeiros, retirava a madeira e vendia.
“Ele tirava madeira aqui em Tangará, em Nova Olímpia, Arenápolis, a maioria Aroeira, por isso o apelido de Zequinha da Aroeira”.
No começo era tudo manual, usando machado, traçador e cunha, carregando madeira em tração animal. Somente mais tarde veio a motosserra e caminhões Chevrolet para transportar a madeira.
“A junta de boi que carregava a madeira era chamada Mascote e Pascote e o Nego Dão e o Erondino eram quem guiavam a junta de boi”,
lembram os filhos.
A esplanada, local onde ficava armazenada a madeira extraída por Zequinha, funcionava no local onde hoje é a Paróquia Santa Terezinha, na região da divisa dos bairros Vila Portuguesa, Vila Alta e Vila Santa Terezinha.
“Vinha do mato e ficava ali aquele monte de madeira, igual uma serraria, aí o fazendeiro vinha escolhia a madeira que queria. Muita gente nem sabia o nome dele, só conhecia como Zequinha da Aroeira”,
conta Arildo.
Somente depois, com o Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF) (criado em 1967 e substituído em 1989 pelo IBAMA), que era responsável pela gestão das florestas, que Zequinha começou-se a retirar a madeira de forma legal, documentada e fiscalizada pelo órgão.
“O pai ia na Barra e o fiscal vinha aqui, era tudo legalizado, tinha a guia, o documento para representar que era legalizado”,
relatam os filhos.
Eles contam que os caminhões de Zequinha eram o meio de transporte de muita gente na época para ir para festividades nas comunidades e no rodeio que acontecia na região da Vila Goiás.
“Naquela época não era proibido, aí ia todo mundo em cima do caminhão pra festa, a vizinhança toda subia no caminhão e ia pra festa”,
contam.
Na época das festividades de aniversário do Município o caminhão era enfeitado e carregava alunos em desfile comemorativo na avenida Brasil.
“Não tinha nem asfalto na avenida Brasil”.
“Meu pai não tinha dinheiro, mas foi um desbravador, ajudou a construir Tangará do jeito dele, era comunicativo, gostava de política e ajudou muito o [Hitler] Sanção que na época era prefeito da Barra [do Bugres], pessoa pobre, humilde e honesta. Não deu conforto, roupa de marca, mas deu amor, carinho e educação nós recebemos muito bem do meu pai”,
relata, emocionada a filha Maria Eunice.
Na política Zequinha se envolveu de maneira indireta, nunca saindo candidato, apesar de ser sempre convidado para se candidatar. Foi cabo eleitoral da primeira prefeita, Thaís Barbosa. Ajudou a construir e coordenar a Igreja Santa Terezinha, hoje Paróquia Santa Terezinha.
“Ele saia de jipe para os sítios pedir ajuda pro povo pra construir a igreja, então ele participou da criação da Igreja Santa Terezinha, ganhava novilha, galinha e juntava todos para fazer as quermece pra angariar recurso pra igreja e pra escolinha [extensão da Escola Estadual Ramon Sanches Marques] que funcionava ali onde hoje é a igreja”,
contam os filhos.
A morte em 2017 e a homenagem
Seu Zequinha da Aroeira permaneceu casado com Ângela Maria por 71 anos, completados em agosto de 2017. Com ela, ele teve 9 filhos, sendo 5 mulheres e 4 homens, 15 netos, 16 bisnetos e2 tataranetos. O patriarca da família Relíquias faleceu aos 91 anos, no dia 04 de janeiro de 2017. No dia 10 de fevereiro de 2020, através do Decreto Nº 059, o então prefeito Fábio Martins Junqueira denominou a praça localizada entre as ruas Neftes de Carvalho (rua 19), Adelaide M. Jesus e José Duarte, como Praça José Relíquias Santos, em homenagem ao senhor Zequinha da Aroeira.
A praça está localizada na subida do Parque Natural Ilto Ferreira Coutinho (Bosque Municipal), no encontro do Jardim Rio Preto com a Vila Portuguesa, bairro em que Zequinha da Aroeira viveu boa parte de sua vida, desde 1977, até a sua morte em 2017. Uma justa homenagem que reconhece a importância e a contribuição de José Relíquias Santos ou simplesmente Zequinha da Aroeira para a construção de Tangará da Serra.
Jose Mario de Souza Stela 20/07/2022
Meu pai Ariovaldo Stella também foi um pioneiro em Tangará da Serra.
Jose Mario de Souza Stela 20/07/2022
Meu pai, Ariovaldo Stella também foi um pioneiro de Tangará da Serra.
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